A função da tutela penal patrimonial e a criminalização da pobreza no Brasil contemporâneo

“Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras [...]. Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas diante delas.”
Cesare Beccaria

O início do século XX, no Brasil, foi marcado pelo crescimento das revoltas populares, como os cangaceiros que se viram explorados pelos latifundiários. O Código Penal Brasileiro, de 1940, foi criado por legisladores da elite, com temor aos ataques políticos ao patrimônio através do socialismo, e ainda, com o crescimento das revoltas populares, como a Revolta da Vacina e a grande indignação de Virgulino Ferreira e seus seguidores, motivo que levou o legislador a ser patrimonialista, ou seja, o direito penal privilegia os interesses das classes dominantes desde sua criação.

Beccaria, há anos, escreveu sobre a proporcionalidade das penas em razão dos delitos cometidos “O interesse geral não é apenas que se cometam poucos crimes, mas ainda que os crimes mais prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para impedir os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais frequente. Deve, portanto, haver uma proporção entre os crimes e as penas”.

No entanto, no Brasil, contrariando os ensinamentos de Beccaria, a extorsão mediante sequestro é o crime com maior pena no nosso Código Penal, demonstrando o desvalor com a vida humana, ao punir com ênfase os crimes contra o patrimônio. Ihering entende que a vida é mais valiosa que o patrimônio “Só conflito de deveres entre a defesa da propriedade e a preservação de um bem mais elevado, como a vida, conflito que surge, por exemplo, quando o assaltante coloca a vítima diante da alternativa de dar o dinheiro ou a vida, pode justificar a renuncia à propriedade”.

Beccaria nos oferta um exemplo “Se for estabelecido um mesmo castigo, a pena de morte, por exemplo, para aquele que mata um faisão e para aquele que mata um homem ou falsifica um documento importante, em pouco tempo não se procederá a mais nenhuma diferença entre esses crimes”. E, parafraseando Millôr Fernandes, viver é desenhar sem borracha, sendo assim, nos assusta ver que o homicídio não é o crime com maior pena no Brasil.

Os interesses privados sempre sobressaem em detrimento dos verdadeiros valores de uma sociedade, ainda que o cenário histórico da criação do Código Penal, quando os crimes contra a vida eram geralmente passionais, nunca um bem de consumo poderia ter mais apreço que a nossa existência.

A tutela penal recai sobre as camadas mais pobres, que recebem sanções drásticas, chafurdando-as cada vez mais no calabouço social. Aprisionar um indivíduo não resolve o problema da criminalidade, não restitui o bem tomado, apenas suspende as atividades criminosas. Ataca o efeito da desigualdade social, sem solucionar a causa, e nas palavras de Alessandro Baratta “porque a educação deve promover a liberdade e o autorrespeito, e o cárcere produz degradação e repressão”.

Por que não a reparação do dano? Parece que a simples pena, pagar com a dor de estar desprovido de sua liberdade não mostra resultados animadores. A punição deveria ser pagar o bem expropriado ou destruído.

Vimos um caso desalentador, quando a doméstica Angélica Aparecida Souza Teodoro foi presa por furtar um pote de manteiga [i] e ficar encarcerada por quatro meses, ou seja, furto de bagatela, com o valor inexpressivo, que assume um caráter de irrelevância e deveria ser coberto pelo princípio da insignificância, provando que há concentração dos bens materiais nas mãos de poucos, não existe distribuição de renda, resultando na tutela exacerbada do patrimônio.

Por outro lado, observamos os crimes de “colarinho branco”, que acompanhamos exaustivamente nos noticiários de TV ou nas manchetes dos jornais, estes, não são perseguidos, por pertencerem à camada economicamente poderosa, socialmente privilegiada, a preferência política são os crimes patrimoniais, pois é fato que advém dos subalternos.

Zaffaroni estabelece que o discurso jurídico-penal nunca pôde enfrentar a realidade seletiva do poder punitivo, pois se converteria necessariamente em deslegitimante ao não poder compatibiliza-lo com a igualdade perante a lei.

Alessandro Baratta ensina “A lei penal não é igual para todos, o status de criminoso aplica-se de modo desigual aos sujeitos, independentemente do dano social de suas ações e da gravidade das infrações à lei penal realizada por eles”, com isso, a vulnerabilidade faz com que cada vez mais exista uma camada de criminalizados em nosso país.

Quem furta e rouba no Brasil e é punido? É óbvio que são os excluídos sociais, embora não possamos generalizar, uma vez que os filhos da burguesia possam fazê-lo, por “diversão”. Beccaria já dizia “o roubo é comumente o crime da miséria e da aflição, para os quais o direito da propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) apenas deixou a vida como único bem”.

A Carta Magna de 1988 é patrimonialista, pois o art. 5º, inciso XXII, determina “é garantido o direito de propriedade”, com eficácia plena, já o direito à greve, art. 37, inciso VII, “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”, tem eficácia limitada, ou seja, como não existe lei que a regule, não pode ser exercida, pois favoreceria a classe dos trabalhadores.

A globalização fez crescer as desigualdades sociais, aumentando a hierarquização de classes, existem cada vez mais desempregados, acentuado pela falta de educação, habitação e dignidade, ocasionando uma tensão social que só tende a piorar. E, recorrendo novamente a Beccaria “É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los”, contudo, estamos muito longe da prevenção, pois a educação deveria estar aliada a uma política social, traçando um caminho possível para que as pessoas consigam se desgarrar das amarras da marginalidade.

O filme “Crash – no limite” mostra uma cena para ampla reflexão, quando um policial oferece carona a um jovem pobre e negro, que coloca a mão no bolso para pegar a reprodução de um São Cristóvão, mas, na dúvida, o policial dispara sobre sua cabeça.

E ainda, na recente declaração do Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, defendendo o aborto com um motivo estapafúrdio, o fechamento da “fábrica de marginais” [ii]. Acrescentando estigmas irreparáveis aos que não têm acesso a um ensino de qualidade, que são discriminados pela simples existência, ou seja, criminalizando a pobreza, por oferecer risco à segurança pública, nos moldes atuais, e, novamente recorremos a Baratta “Assim, a seleção legal de bens e comportamentos lesivos instituiria desigualdades simétricas: de um lado, garante privilégios das classes superiores com a proteção dos seus interesses e imunização de seus comportamentos lesivos, ligados à acumulação capitalista; do outro, promove a criminalização, condicionado pela posição de classe do autor”.

Finalizando, somos diretamente responsáveis uns pelos outros, ou seja, “sou o que nós somos”, nossas ações afetam o todo, a vida é uma balança que depende do comportamento do conjunto. Cada ação negativa nossa fortalece o lado negativo da balança geral do universo. Consumimos sem freios: tênis, carros, relógios, e, em nenhum momento cogitamos que somos também responsáveis pelas mazelas da humanidade.


[i]http://www.estadao.com.br/arquivo/cidades/2006/not20060324p26177.htm
[ii]http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html

Você também pode gostar

0 comentários

Experiências incríveis!